*qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência
Eu espero ansiosamente pelo último dia, como quem espera uma novidade, uma data especial ou uma surpresa inesperada. Na maioria das vezes, não é nada disso que vem; e então me esbarro com mais um dia comum, um pouco ordinário e meio cinzento pela manhã seguinte. Quase sempre, a vida continua. Ela sempre dá um terrível jeito de continuar, mesmo contra a minha vontade.
Espero esse dia como se ele fosse me salvar da vida e de continuar tentando. E me arrancar de estar no meio da minha própria anarquia. Como se esse dia fosse ser capaz de estancar as minhas dores e mandar embora consigo toda a angústia, mesmo que levando consigo toda luz, toda brecha de esperança e qualquer outra coisa que fizesse algo, além disso, valer a pena.
Eu sei que esse dia levaria tudo. Os aprendizados, as conversas, as lembranças, as memórias; arrebentaria tudo de uma vez, sem o mínimo de compaixão e lerdeza. Seria um instante entre estar aqui e não estar mais.
Acontece algo, e então eu tenho que lembrar de suportar, mesmo ninguém sabendo o quanto estou cansada de sustentar essa vida, essas escolhas, todos os passos já dados e todos os futuros que nem dei ainda; cansada de continuar escrevendo novos capítulos de uma mesma história que eu já não tenho vontade alguma de escrever.
Eu queria pular até a última página só para evitar as dores e sofrimentos do meio, mesmo sabendo que isso seria algum tipo ruim de trapaça. Queria me dar a chance de experimentar as coisas que sempre estiveram presentes na minha vida, sabendo que seria a última vez delas aqui. Como seria o sabor de um prato de arroz, feijão e batatas fritas? Qual seria a sensação de ouvir Agnes Nunes mais uma vez? Como seria a reconfortante sensação de um banho quente?
Acho que estou me acostumando a viver os dias ansiando para ser o último. Já nem sei mais o que é esperar qualquer outra coisa da vida que não esse adeus engasgado da garganta, que eu já tentei dizer e a vida não deixou. Cada dor & sofrimento, por menor que seja, por mais insignificante que pareça, por mais devastador que se torna, é um lembrete do quanto eu não queria estar aqui.
E assumir isso dói; é como ir contra toda a vida que veio antes, é como estar em oposição a cada texto que já escrevi, cada plano que já criei, cada sonho que já idealizei para mim. O engraçado é que viver essa espera toda não muda como vivo os meus dias. Acordo, preparo o meu café sem açúcar, visto minha roupa de treino, cumpro as minhas séries e repetições, sento para estudar por algumas horas, abro o computador para atender e quando percebo, estou deitada na cama agradecendo pelo dia e desejando que o próximo se transforme no último.
Me conhecendo, acho que eu não conseguiria passar pela vida em modo vegetativo, disfuncional e apático a espera dessa despedida. Preciso me ocupar enquanto esse dia não chega. Preciso direcionar meu foco e minha atenção para as coisas minimamente aceitáveis, para o pouco que ainda me mantém de pé e no eixo, para o pouco de fôlego que consigo tomar dia após dia para continuar dando algumas braçadas a mais. .
É a mesma sensação de estar se afogando em mar aberto ou em uma piscina olímpica e subir rapidamente para soltar o ar preso nos pulmões e enchê-los de novo. Existem muitas coisas na minha vida que transformei nesse fôlego a mais.
A maioria das pessoas vê o estudo como um compromisso admirável & uma disciplina impecável. Para mim, é mais como uma válvula de escape que fui aprendendo a construir; é como eu fujo das coisas ruins que acontecem, é o que faço quando a vida me bate e eu apanho; é como distraio a mente dos problemas insolúveis que me perseguem aqui dentro, é como faço para combater as coisas de fora sem sangrar tanto.
Me ocupar com concurso público é o jeito que encontrei de acabar com a vida mesmo passando por ela; é como a torno mais sustentável. Acredito que as minhas escolhas de área & cargo são uma tentativa de me apagar. Me apagar em um trabalho exaustivo; me deletar em um campo de responsabilidades e deveres, é viver tão claustrofobicamente presa em demandas que mal sobra espaço para pensar que esse último dia está demorando mais do que deveria.
Viver é tão exaustivo que preciso cansar o corpo e a mente para não me deparar com o cansaço da alma.
Pensar que há uma data de validade me conforta. Saber que isso não é eterno me alivia alguns pesares. Saber que essa vida tem um começo e um fim me protege dos desesperos desmedidos, das brigas e teimosias desnecessárias, das amarguras que me visitam. Gosto de viver os contratempos do dia pensando que um dia nada disso vai continuar existindo, que um dia tudo isso será pó, esquecimento e partida.
Um dia, nada disso continuará sendo importante.
Para quê viver brigando tanto, sendo que a morte pode me visitar a qualquer instante? Porque me dar ao trabalho de me estressar com a fatura em aberto, com aquela culpa pela pizza do fim de semana, com aquela discussão boba, se um dia tudo vai se transformar em memórias que não serão minhas, mas sim de quem ficar? Isso me ajuda a colocar grande parte da vida em perspectiva. Cada vírgula, cada contratempo, cada tombo.
Um dia não vou estar mais aqui, e talvez as minhas obras, efeitos & frutos ainda estejam e permaneçam por mais tempo. Mas enquanto isso, eu continuo desejando a sorte de um último dia, o acaso de um adeus inesperado e a chance de aliviar os dissabores, a lágrimas e desgostos que fui colecionando ao longo da vida. Acho que a vida não é para pessoas como eu: que carregam tanto sentimento dentro de si a ponto de quase morrerem sufocadas por cada um deles.
E mesmo vivendo essa vida, eu não estou tentando de forma prática encurta-la, mesmo sabendo que eu poderia, seja usando drogas, bebendo álcool, me alimentando mal, sendo sedentária, passando horas e horas assistindo Netflix, mas acho que nada disso adiantaria algo que não depende de mim, mas de todo um cronograma do universo e dos céus. Então me tranquiliza o fato de que não cabe a mim adivinhar o futuro, apenas suportar o presente, e isso já é um peso difícil o suficiente de carregar.
Eu sei que amanhã a vida vai estar me esperando, contrariando todas as minhas vontades, ela vai estar de prontidão para me entregar todas as suas surpresas, dores e pequenos momentos de felicidade. Ela vai estar mais uma vez pronta para me arrancar coisas importantes e me dar outras para colocar no lugar; é difícil não odiá-la toda vez que ela faz a sua mágica; é difícil não me odiar por deixar ela fazer a sua mágica.
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